
“A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. Se ninguém pronuncia um nome este ser está morto, mesmo que respire e leve um coração batendo no peito. Estar vivo é ser palavra na boca de alguém.”
- Socorro Acioli, em seu livro Oração para Desaparecer
Hoje, se eu pudesse, ligaria para minha avó.
Contaria que fiz Romeu e Julieta para uma sobremesa despretensiosa numa segunda-feira.
Talvez ela me questionasse, achando no mínimo estranho essa vontade urgente e sem pretexto que me surgiu. Nunca gostei muito do queijo minas, e não perdia as oportunidades de exaltar meu favoritismo com o pudim.
Mas ver o queijo e a goiabada ali, na mesma prateleira da geladeira, o queijo na queijeira e a goiabada num recipiente de vidro, me soou tão familiar e natural quanto teria sido discar o número da casa dela para contar que havia trocado todo meu aparelho de jantar do dia a dia.
Ou, então, para falar que eu estava precisando de umas toalhas novas para a mesa da cozinha, o que se transformaria numa conversa sobre os tipos de toalha, onde comprar, e todo um universo de diálogo sobre toalhas, incluindo os bicos, sempre muito importantes para o acabamento.
Talvez a conversa voltasse para o Romeu e Julieta e eu descobriria que ela leu na mocidade todas as obras de Shakespeare em inglês original, sem as adaptações modernas. Talvez recitasse uma passagem ou duas de cabeça. E ainda acharia alguma conexão sutil para incluir uma curiosidade sobre as declinações do latim.
Nada tão absurdo numa conversa com ela. Minha avó era culta na medida do inesperado.
Quem sabe ela me contaria das vezes em que esteve em Verona, e começaria a rememorar as comidas tradicionais italianas divididas pelas regiões. Provavelmente me ensinaria algum passo a passo para alguma receita, sempre com a ressalva “é só fazer um molho simples”. Aquele simples que de simples nada tem.
Ela me perguntaria sobre algum restaurante novo, eu falaria o que eu havia escolhido do cardápio, eu falaria para ela ler o livro Sabor, do Stanley Tucci, ela falaria que leu a crítica que saiu no jornal a respeito do filme Conclave e eu recordaria em silêncio a memória dela lendo o caderno Paladar.
Falaríamos mais um bocado sobre assuntos diversos, alguns de pouca monta outros tão profundos como a vida, e eles teriam pitadas gastronômicas aqui e ali.
Aos poucos, perceberia que mais que memórias criadas, a lembrança futura da minha avó não se resumiria em evocar seu nome, mas apareceria em temperos e sabores da vida no cotidiano, como num Romeu e Julieta.
Fiquei com vontade de comprar uma toalha nova para a mesa da minha cozinha. Minha avó teria gostado. Aprendi isso com ela: ter sempre toalhas bordadas e bonitas à mesa.
Está aí uma pessoa retratada em letras, em palavras misturadas com emoções. Um retrato vivo de um dia normal nas nossas vidas. A D. Marilena vive neste texto. Saudades…
Queria ter conhecido sua avó! Quanto orgulho ela deve ter sentido e ainda sente de você, onde quer que ela esteja! 🩵